segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Emergência de ser Sujeito

Na racionalidade cartesiana da modernidade o sujeito foi reduzido ao indivíduo, diante da transformação da sociedade em produção e consumo de massa. A separação do sujeito dos objetos tornou-se possível pela eficácia da racionalidade instrumental dominada pela técnica e pela ciência. A visão demasiado racionalista ocultou o sujeito humano enquanto ser de liberdade e criação.
Paradoxalmente, a modernidade se caracteriza pela liberdade humana, uma vez que a passagem para a modernidade não significa a passagem de um mundo de múltiplas possibilidades para o mundo da razão, ao contrário, ela triunfa pela busca da não conformidade de um mundo medieval-feudal para um mundo múltiplo de possibilidades, no qual os Direitos do Homem traz consigo a liberdade e a autonomia dos sujeitos à própria vida.
Assim, continuamos a chamar de modernidade o que é a destruição de uma parte essencial dela mesma. Não existe modernidade a não ser pela interação crescente entre sujeito e razão, entre a consciência e a ciência. A idéia de que era preciso renunciar o sujeito para que a ciência triunfasse, que era preciso sufocar o sentimento e a imaginação para libertar a razão, e que era necessário esmagar as categorias sociais identificadas com as paixões, mulheres, crianças, trabalhadores e colonizados, sob o jugo da elite capitalista identificada com a racionalidade, foi uma imposição!
A imagem da modernidade ficou por muito tempo ligada à idéia de renúncia aos prazeres e à criatividade em nome de uma sociedade centrada na produção do trabalho, mantendo-se um forte elo entre modernidade e racionalização. Essa relação é perceptível na obra de Weber sobre as relações entre o protestantismo e o capitalismo.
No entanto, o sujeito ultrapassa a concepção de indivíduo racional, não é possível despersonalizar o sujeito à própria razão.
O mundo moderno não é um mundo de complexidade reduzida ao indivíduo, mas é cada vez mais ocupado pela referência a um Sujeito que está liberado, que coloca como princípio do bem o controle que o indivíduo exerce sobre suas ações e sua situação, o que lhe permite conceber e sentir seus comportamentos como componentes da sua história pessoal de vida e de conceber a si mesmo como ator. O sujeito é a vontade de um indivíduo agir e de ser reconhecido como ator.
Em princípio somos todos indivíduos e só nos tornamos sujeitos a partir do reconhecimento social.
Somos freqüentemente atingidos por esta doença da civilização. Por um lado, vivemos um individualismo narcisista; por outro somos tomados pela nostalgia do ser sujeito.
Enquanto o indivíduo se fragmenta nas múltiplas realidades, revela-se fragilizado e submisso à cultura das indústrias de comunicação de massa. O sujeito passa pela idéia de resistência ao mundo impessoal do consumo ou ao da violência e guerra. O sujeito nunca se identifica consigo mesmo, mas se situa na ordem dos direitos e dos deveres, na ordem da moralidade,...
Somos continuamente desintegrados, fragmentados e seduzidos, passando de uma situação a outra, de uns estímulos a outros. Perdemo-nos na multidão de nossas situações, de nossas reações, de nossas emoções e de nossos pensamentos. O sujeito é um chamamento a si mesmo, uma vontade de retorno a si mesmo, em sentido contrário à vida ordinária.
O sujeito não se reduz a ele mesmo na sua própria experiência imediata. A defesa dos cidadãos frente aos arbítrios do Estado é uma defesa do sujeito, daqueles que não suportam ser considerados como recursos humanos passíveis de ser utilizados eficazmente a serviço do Estado ou da empresa.
Enquanto o indivíduo se situa na ordem da experiência, do desejo e da percepção, o sujeito se constitui no seu duplo que é a ordem do direito a ter direitos, de fazer com que todos tenham direitos.
O sujeito, ao contrário dos indivíduos, só se configura pelas ações coletivas, se reforça pelas instituições e pela luta por grandes causas.
O sujeito é sempre grandioso!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Apartheid Social e cultural. A Música Popular Brasileira e a pulseira Roxa.

Recentemente fui ao Festival da Música que acontece todos os anos em Canela, no Hotel Laje de Pedra. O festival é famoso pelo fato de haver muitos músicos circulando, tocando, bem como pela mistura de estilos musicais.
Eu nunca havia ido a essa festa, mas tinha muitas expectativas. Imaginava ver as pessoas próximas de seus ídolos musicais, podendo ouvi-los tocar em uma das belas salas do Laje de Pedra com vista para o vale, essas coisas...
De fato isso existia, mas não era para todas as pessoas que ali estavam. No Festival de Música havia um apartheid social e cultural.
O primeiro andar tinha acesso aos ídolos, às bebidas, comidas e claro, boa música. Já a patuléia, que tinha apenas um convite comum tinha que se conformar em ouvir apenas quem estava disposto a dar um show. Aliás, o show para a patuléia era previamente combinado e tinha hora para começar e terminar.
Já no andar de cima, a noite rolava, sem horários, a música e o glamour não tinham hora para acabar. Os músicos se juntavam: Sandra de Sá e Jorge Ben Jor cantavam juntos, faziam sonzeira, comidinhas e bebidinhas,...
Todas as pessoas queriam estar no andar de cima, mas o andar de cima era apenas para alguns, para os que tinham a pulseira roxa.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A sociedade civil e as possibilidades da democracia

Hannah Arendt disse que o totalitarismo era a destruição da sociedade civil, como forma de eliminar qualquer poder que pudesse contrabalançar com o poder do Estado.
Assim, podemos considerar a sociedade civil como requisito prévio para a restauração da democracia.
Durante a ditadura militar no Brasil e na América Latina, os escritos políticos que circulavam entre as pessoas ligadas à resistência ao regime, assim como nos bares, encontros secretos, igrejas ou nas guerrilhas civis, mantinham vivo o espírito de uma sociedade civil livre e democrática.
Da mesma forma se deu a resistência nos países dominados pela União Soviética e o Leste Europeu, em manifestações resistentes ao comunismo totalitário, os dissidentes mobilizavam-se para fazer valer a voz da liberdade cívica.
A sociedade civil que emergiu após as ditaduras militares na América latina e na Europa do leste parecem não ter tido as virtudes cívicas que se julgava ser inerente à sua própria existência, não se demonstrando suficiente a combater os males da sociedade democrática.
Essa parece ser a grande e dolorosa lição que estamos enfrentando!
A tensão que se estabelece entre os vários entendimentos sobre democracia e em seus diversos momentos históricos pode ser percebida em eixos paradoxais: entre as aspirações de liberdades e igualdade política que inspiram as constituições modernas e que, atualmente, parecem ter reunido as condições técnicas para a consolidação desses ideais; e as desigualdades sociais, eis que a exclusão social da qual faz parte uma imensa quantidade de pessoas, evidencia a distância da realização dos ideais modernos.
Os esforços teóricos que nortearam o século XIX até meados do século XX têm sido no sentido de definir e aplicar pressupostos democráticos, bem como estabelecer seus limites de intervenção da sociedade civil na esfera pública. Assim, a democracia se estabelece como forma de legitimação de governos, excluindo outras formas possíveis de compreender a democracia como construção política permanente e de baixo para cima.
Atualmente, a globalização neoliberal tem afirmado os pressupostos democráticos elitistas e desenvolvimentistas no campo político.
Até a metade do século XX se deu uma intensa discussão em torno da questão democrática, também foi durante os períodos das duas grandes guerras que a democracia como forma de governo se tornou hegemônica. O consenso sobre a democracia como procedimento eleitoral se sobrepôs às possibilidades de participação e soberania.
Na contra ordem das visões dominantes da democracia, aparecem experiências democráticas periféricas que não correspondem às teorias hegemônicas que se consolidaram na modernidade.
A construção da democracia dialógica/participativa, no que diz respeito às experiências que se constituem em outras gramáticas democráticas, em especial as iniciativas de Economia Solidária no Brasil, as quais apontam não somente para experiências democráticas de alta intensidade, mas tem reunido outros pressupostos de inserção, quais sejam, econômico, social, cultural, que traduz um campo periférico não conformado com as sobreposições coloniais que têm pesado sobre eles.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DE QUE LADO ESTÁS, ARIEL?

O autor português Boaventura de Souza Santos faz uma analogia da obra de Shakespeare a tempestade, na qual se depara entre figura de Ariel, um escravo de Próspero (Duque de Milão) e também seu preferido e o Caliban, escravo tanto quanto Ariel, porém nascido na ilha, sem origem européia, um sujeito deformado e mal tratado por Próspero.
Ambos são escravos, porém Ariel tem um tratamento muito diferente de Caliban e também por isso tem uma visão muito diferente da figura de Próspero, o qual lhe promete a liberdade caso ele seja sempre um servo fiel.
O Caliban está amarrado ao Próspero de uma forma brutal, tensa, se odeiam, mas dependem um do outro. Já Ariel não, respeita Próspero e acredita que se for um servo fiel terá a sua liberdade.
Eis o grande paradoxo brasileiro: seremos nós Ariel? Fiel servo de Próspero (na figura norte americana e européia), na esperança de que tal servidão nos trará a liberdade? Ou servimos Próspero diante do medo de termos o mesmo tratamento de Caliban?
Ainda que nossa serventia pareça agradar mais ao Próspero do que ao Caliban, não conseguimos deixar de identificarmo-nos com a servidão de Caliban. É a escravidão que nos une e não a liberdade!
Afinal de contas de que lado estás, Ariel? Do Caliban, que é tão escravo quanto tu? Ou de Próspero que te escraviza?
As soluções econômicas que estamos a acreditar parecem circular ente Próspero e Caliban, com uma dificuldade imensa em posicionarmo-nos entre amo e escravo, ou entre escravo e escravo. Ou, ainda, de encontrar uma alternativa mestiça, própria e autêntica.
No entanto, as alternativas para as questões políticas, econômicas e democráticas, parecem a contentar mais ao Próspero do que o Caliban.
O Brasil tem utilizado sua possibilidade produtiva, seu peso econômico e populacional para tentar adquirir um peso maior no conceito de Próspero. Atua isoladamente na esperança da liberdade, discriminamos nossos companheiros Latino Americanos, tão escravos quanto nós, para termos um conceito melhor com o amo. E isso é possível perceber quando reproduzimos os discursos europeus e norte americanos e tentamos demonstrar a Próspero o quão diferente somos de Caliban.
Também é possível perceber nas idéias dominantes que as pessoas têm sobre o desenvolvimento local, nas quais prevalecem conceitos de progresso compreendido desde as concepções hegemônicas eurocêntricas, cujo progresso é sempre (re)produzido em defesa de Próspero e não de Caliban. O desenvolvimento tem sido entendido a partir da idéia de que devemos dar incentivos para Próspero, assim o Caliban continuará a ter trabalho, mas não deixará de ser escravo!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O eucalipto e a desmaterialização da economia

O eucalipto e a desmaterialização da economia
Sebastião Pinheiro
Na África, mais precisamente na região do interior da Angola, as tribos e clãs ao não possuírem escrita transmitiam sua memória para os descendentes através das árvores. Cada Família tinha uma árvore, que contava a história para as crianças, através dos mais velhos. Assim a memória passava de geração para geração e construía o passado de todos.Um sacerdote metodista inglês chegou e achou aquela atitude social religiosamente praticada como animista e mandou cortar todas as árvores. Logo, a comunidade dispersou-se e finalmente destruiu-se, por não ter mais referências.Aqui no Espírito Santo, o Sr. João Martins contou que seu avô para evitar que se cortassem todas as árvores de valor começou a colocar o nome das crianças que nasciam nas árvores. Hoje ele herdou não só a memória, mas um patrimônio invejável.I - EMPRESA VERSUS ESTADOO respeitável cientista Walter Lima nos diz, em parecer, que as florestas de produção ou matérias-primas são atividades econômicas para empresários e que a restauração de ecossistemas é função de governos. O sábio Paulo de Tarso Alvim foi além e disse que ninguém vai se preocupar com atividade que não dê lucros. Há uma contradição espacial na fala de ambos os mestres, funcionários públicos, pois entre os escandinavos, canadenses, japoneses e norte-americanos, as florestas são manejadas desde muitos e muitos séculos, sem que isto seja de interesse de empresários apenas ou de governos somente. Uma floresta é um recurso natural renovável, logo eterno, perene.Uma floresta, seja para a finalidade que for, tem diferentes enfoques entre países autônomos e periféricos. Entre eles as florestas são sujeito de políticas públicas, ao passo que entre nós, elas são objetos.Por isso, apesar das leis, das normas etc., as universidades ensinam absurdos como os antes expostos, a partir da visão heteronômica, utilitária e reducionista.Vamos trabalhar as afirmações daqueles mestres, contextualizando-as ao longo do tempo e "em novo" espaço, dentro de uma retrospectiva de 33 anos e uma projeção de 66 anos.Porque adotamos um período de 99 anos?Simplesmente porque este é o espaço de responsabilidade de uma empresa. Assim, separamos dos aspectos de uma floresta, que é um recurso natural renovável e perpétua, uma característica consoante com o Estado Nacional.Não podemos confundir empresa com Estado Nacional, pois a empresa visa lucro. Já os objetivos do Estado Nacional são outros e completamente diferentes. É importante ressaltar isto, porque, hoje, com as ondas de globalização e neoliberalismo, muitos governos o ignoram, por incompetentes. O Estado Nacional visa servir a todos através da cidadania, o que não é um serviço, negócio ou dádiva. É função do Estado controlar a todos dentro da lei e da norma com igualdade. Há mais ou menos 33 anos atrás, uma crise começou a assolar o mundo: a impossibilidade de crescimento infinito em um mundo finito. O Clube de Roma recebeu o relatório do casal Meadows intitulado: "Os limites do Crescimento".Até àquele relatório, o monopólio da produção do papel de imprensa, celulose e derivados era quase que exclusivamente de empresas escandinavas ou canadenses, onde os bosques eram manejados sustentavelmente.A demanda por papel e celulose crescia e as empresas do Norte contudo, percebendo o impasse, anteciparam-se e migraram seus negócios para o hemisfério Sul. As empresas que no Norte tinham pequeno porte, ao cruzar a linha do Equador tomaram uma dimensão assustadora.Isto deveu-se a febre desenvolvimentista que passou a imperar nos países subdesenvolvidos, que passaram a ser chamados de países em desenvolvimento. Este período é o auge da Guerra Fria e a grande maioria das empresas migrantes instalam-se nos locais mais absurdos.A crise mundial da natureza leva à Conferência de Estocolmo. Uma nova Ordem Internacional começa a equacionar-se, mas as grandes empresas antecipam-se e transferem as empresas problemas. Um exemplo é a criação da Adela, que instala a Cia de Celulose Borregaard, de origem norueguesa, no Rio Grande do Sul. Ela estranhamente começa a plantar eucalipto em terras de arroz irrigado, com isenção total de impostos, destruindo as economias municipais, e a tornar o ar da região metropolitana irrespirável para seus 2 milhões de habitantes.Desconhecia-se Zoneamentos Agro-ecológicos. A falta de visão do governo compromete a função do Estado Nacional e dilapida a riqueza da sociedade, embora o PIB do Estado cresça.II - ECONOMIA VERSUS CREMATÍSTICAEstes governos autoritários, sem cosmovisão, ao não conhecerem autonomia, desconhecem a diferença entre valor econômico e crematístico.Estes termos foram criados por Aristóteles, que se preocupou em diferenciar o valor econômico do valor crematístico, em sua obra "A Política". Para todos nós, o termo "oikos" dá origem tanto à ecologia (estudo da casa, ambiente) como à economia (administração da casa, ambiente), mas a diferença entre ambos é o mero aspecto pecuniário, que vai agregado a muitas atividades econômicas.Ele separou a economia da crematística de forma simples: economia significa utilização (é perene), já a crematística, aquisição (é temporário).Crema em grego quer dizer moeda e a função da moeda é adquirir. Contudo moeda não quer dizer riqueza, ela é apenas uma convenção. Lembremos do rei Midas que transformava em ouro tudo o que tocava. Seu dom era uma maldição, pois ele morreu de fome, já que não podia comer ouro.Uma plantação de árvores (eucaliptos) tem valores crematísticos e uma floresta tem valores crematísticos e econômicos. E ambos são muito diferentes. Nos últimos 33 anos, a natureza, o meio ambiente passou a ser incorporado pela ordem vigente à economia dos países do Norte, e à crematística, nos países do Sul, embora os governos não saibam a diferença entre ambas.O pior é que, muitas vezes, os governos crêem que há uma migração econômica com a chegada de empresas do Norte, mas o que vêem são valores crematísticos. E os valores que saem daqui para lá transmutam-se em valores econômicos. É assim que se subfatura a natureza local.Por aquela época (anos 70) havia, entre nós, abundância de natureza e qualidade de vida, mas era ensinado nas escolas que a floresta natural era um empecilho, que, quando queimada, se estava fazendo uma benfeitoria.Após o incêndio, para por gado ou eucalipto, o banco financiava e até subsidiava, fosse o Banco do Brasil, o Banco da Amazônia (Basa) ou o interesse de outros agentes dos bancos internacionais.É assim que o espaço natural, ocupado pelos indígenas, posseiros ou pequenos agricultores familiares, será usurpado pelo grande empreendimento crematístico, mas não econômico e o valor desta moeda migra para a economia do Norte, que usufrui desta heteronomia e ignorância.III - NATUREZA VERSUS MEIO AMBIENTEEm 1972, a ciência e tecnologia estavam dando o grande salto com a criação de organismos transgênicos e clonados. A natureza será a base para a revolução biotecnológica.Nesta época, vivíamos a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente. Logo, plantaremos eucaliptos clonados, mas nem saberemos o que isto significa ou que eles só tem uma utilidade: produção de celulose.Induzem-nos a questionar, temer e renunciar à tecnologia. Tecnologia não é boa ou má, ela causa impactos, impactos positivos ou negativos. É função do governo controlar os impactos negativos determinando sua atenuação, ao mesmo tempo que estende os positivos ao máximo.Mas, qual seria a perspectiva do valor do eucalipto, 20 anos depois da Conferência de Estocolmo, quando estávamos em plena Conferência do Rio de Janeiro, a Rio 92, assinando a Convenção da Biodiversidade?Nós nem sabíamos que isto estava ocorrendo em 72 e nossa posição em Estocolmo foi uma posição nortista e, no Rio, ficamos no deslumbramento da nossa riqueza crematística com a biodiversidade.As economias industriais autônomas e, por tal, democráticas, estavam já projetando os próximos 66 anos.Os países industriais promoveram uma "desmaterialização" de nossa economia com uma antecedência de 30 anos. Uma desmaterialização muito diferente do conceito que agora é aplicado, mas com a mesma finalidade.IV - REAL VERSUS VIRTUAL Os partidários da ausência de limites ao crescimento na expansão da economia nos anos 80 começaram a perceber a evolução das economias industriais, que pressagiavam uma progressiva independência do crescimento econômico com respeito ao consumo de energia e recursos naturais. Este processo foi batizado de desmaterialização da economia.Podemos dividí-lo em três partes:a) terceirização,b) diminuição de insumos e energia, ec) descontaminação e menores resíduos, resultado de uma política ambiental em relação ao Produto Nacional Bruto.Vejamos um exemplo. Para produzir celulose é necessário: terra, sol, chuva e trabalho. Isto faz com que a celulose colhida tenha o preço relativo 1,00. Mas na sociedade industrial as empresas criaram fertilizantes, agrotóxicos e outros insumos e o preço desta celulose subiu para 1,20. Depois esta celulose foi branqueada com cloro e seu preço subiu para 1,50. Agora esta celulose segue a sustentabilidade, é ecológica, tem o mesmo custo de 1,00, mas, para ser vendida para um grupo seleto, precisa de certificados de garantia ambiental, certificados de traceabilidade, sistema de garantia de qualidade tipo ISO, e custará 1,80. Isto modernamente se chama de "desmaterialização" da celulose.Porque, então, dizemos que houve uma "desmaterialização" com 30 anos de antecedência? Por que a nossa floresta foi destruída para plantar eucalipto e capim, ou seja, terceirizaram a "Nossa Natureza".Economizaram energia, insumos e mão de obra; transferiram para nós os seus resíduos e contaminação ambiental. Nossa abundância foi tornada escassa, por um conceito da matriz anterior que não foi extrapolado dentro da economia no tempo e espaço, para a nova realidade da engenharia genética e transgenia.Para a crematística, algo, para ter valor, necessita ser escasso. A natureza era abundante e patrimônio de todos. Eles a terceirizaram.Naquele início, vimos a criação do IBDF. Era desenvolvimento queimar a floresta e plantar "gmelinas", eucaliptos, capim ou maçãs. Não vimos que o que estava acontecendo era a destruição econômica do patrimônio de todos, com dinheiro público, para a plantação de monoculturas de capim ou eucalipto para a riqueza particular de algumas indústrias.O governo militar usurpador destruía o coletivo nacional para privilegiar o particular internacional.É assim que as terras públicas, indígenas, reservas naturais, pequenas propriedades familiares foram "desmaterializadas" em cumplicidade com os organismos internacionais. Cabe a pergunta: Ficamos com mais dinheiro (crematística)? Ficamos mais ricos (economia)? Ficamos mais felizes (socialmente)?Não, apenas conhecemos o valor absoluto da miséria e suas mazelas. Qual é então a projeção para o "Nosso Futuro Comum"?V - SEIS VERSUS MEIA DÚZIAHá dez anos atrás, o mundo foi convocado para uma nova Ordem, a da Biotecnologia, onde a biodiversidade passou a ser o valor econômico. Uma convenção foi proposta no Rio de Janeiro e a natureza, repetimos, passou a ter valor. Um ano antes fora criado o Ibama, substituindo o IBDF, mas com a mesma ideologia anterior. Assim, a Mata Atlântica dos colibris e orquídeas, agora se materializa como um valor crematístico.Contudo, para o investidor da época de setenta, que se instalou mal e que quadruplicou seu empreendimento, ela continua se constituindo em estorvo, pois ele projeta sua expansão sobre a selva tropical úmida e o faz através da cumplicidade com os governos e seus burocratas, que, muitas vezes, deixam de ser temporariamente empregados, para serem funcionários públicos defensores dos interesses particulares da empresa.É assim que, na calada da noite, se organiza o fomento ou se cria meios de drenagem de riqueza para o Norte rico.Por um lado, os defensores aduzem que não foi a empresa que destruiu a floresta, que foi o ciclo do café, do gado etc., embora isto seja diferente. Mas para garantir o funcionamento da empresa mal instalada são obrigados a desviar água de um rio nacional, usando o governo municipal como álibi.Mas, qual é o futuro deste espaço que continua biológica e legalmente sendo um território da Mata Atlântica?Qual é o novo valor econômico, não crematístico, do espaço da Mata Atlântica restaurado?A empresa faz tudo para que este espaço continue sendo enxergado na ótica anterior, como mero objeto, e nós como seres utilitários, consumidores e crematísticos por salários e serviços inexoráveis.TRANSPARÊNCIA - LYPTUSVisto em um plano antagônico, onde somos sujeitos, toda a área dedicada à compra de terras, plantios, cultivos e criação deveria, a exemplo do que acontece em todo o mundo, ser disciplinada para evitar abusos, pressões, corrupções e situações assemelhadas.Se, hoje, a palavra chave do planeta é sustentabilidade, uma pergunta aos empresários de celulose: Qual é a sustentabilidade de um empreendimento sobre o espaço da Mata Atlântica nos próximos vinte anos, levando em conta que países da União Européia (Itália, Espanha, Grécia e Portugal) concorrem com eucalipto e celulose de eucalipto?No Rio Grande do Sul, uma empresa "desmaterializou-se" para provar que sua celulose não destruía a Selva Amazônica, gastando muito dinheiro e até contratando um ecologista com prêmios internacionais. Ele confirmou sua vinda, mas alegou problemas de saúde... Talvez, no dia 27 ele poderá estar aqui; é só receber uma ordem. Seguramente tomará vários "chopinhos"...A pergunta é pertinente, assim como foi pertinente a luta dos movimentos ambientalistas para que o branqueamento da celulose abandonasse o cloro, modificando o processo e suprimindo o uso de cloro e dióxido de cloro, pois, diariamente, milhares de quilos de compostos AOX e VOX eram liberados nos efluentes.Foram as ONGs que, com antecedência de duas décadas, impuseram o "novo" da celulose sem dioxinas.Entretanto, não esperavam elas que as empresas usassem dinheiro público para adaptar-se ao mercado. Isto também é uma vergonhosa desmaterialização.O impacto de 25 anos de efluentes com dioxinas e organoclorados alguicidas na bacia pesqueira mais importante do país, quem avaliou, quem mediu?Ninguém se preocupou em poupá-la, preservá-la, protegê-la.VI - PÚBLICO VERSUS PRIVADOQual é o maior valor econômico: a empresa ou a pesca?Contudo os pescadores não tem poder, o poder que torna a empresa superior ao governo e o faz refém de seus interesses.Qual é mais sustentável a empresa ou a pesca?A empresa e governo sabem desta destruição do patrimônio de todos, mas não há respostas, pois somos todos meros objetos.Mas, se fossemos britânicos, como Sua Alteza o Príncipe de Gales ou noruegueses, como o genro de Sua Realeza, o Sr. Lorentzen, qual seria este valor?Esta é a diferença, hoje, entre a nova ordem no Norte e a nova ordem no Sul. Lá, há um poder popular baseado em decisões tripartistes; aqui, instaura-se uma ditadura civil através de Medidas Provisórias para fazer o que o Norte quer.Voluntariado, Solidariedade e Sustentabilidade são os termos crematísticos que o governo usa para iludir a cidadania e a coletividade.Na atualidade, quando o mercado passa a desmaterializar a economia para agregar mais valor e poder ao capital e à tecnologia e criar um maior retorno para a venda de serviços, normalmente, ou melhor, exclusivamente vendidos por consultores do Norte, é que nos deparamos com as metas sociais da Organização Mundial do Comércio (OMC), Banco Mundial e países da União Européia, lembremos que tecnologia não é boa ou má. Ela causa impactos...Agora, é proibido criança trabalhar, mulher receber salário inferior, discriminação humana, religiosa ou poluição ambiental e devastação da natureza.Agora as empresas procuram certificados de qualidade social, ambiental e tecnológica, mas quem amortece os custos é a comunidade pobre do Sul.Muito breve, ouviremos falar de eucalipto orgânico e celulose ecológica. Assim os certificados de sustentabilidade, pureza, social e ambiental abafarão os clamores dos pequenos florestadores familiares ou cooperativados em servidão.Eles terão cada vez menos importância, com o valor do trabalho desmaterializado pelos valores crematísticos dos certificados e serviços. Cada vez menos vale a natureza e o homem, ambos objetos crematísticos da economia do Norte.Isto é subliminar. Achamos ruim quando o presidente Bush negou-se a assinar a "Convenção da Biodiversidade". Agora seu filho, também presidente, nega-se a assinar o "Protocolo de Kyoto".Ele quer dar fôlego à economia norte-americana em crise séria de recessão. Vai aumentar os riscos climáticos com o uso de tecnologias obsoletas à base de combustíveis fósseis, já amortizadas. Com isto, ele manterá os absurdos índices de consumismo dos norte-americanos. Nós sequer percebemos que o que o Bush hoje faz com o povo norte-americano, o Norte vem fazendo conosco há mais de quatrocentos anos.Nós aqui temos o "apagão", já há trinta anos anunciado. Desmaterializaram nossa economia através da poupança compulsória de energia. Nós não temos autonomia, seremos "objeto" pelos próximos 99 anos.VII - SUJEITO VERSUS OBJETOÉ nesse momento de crise energética e de crise climática internacional, que vemos o magnífico Projeto Floram, de fixação do gás carbônico atmosférico por reflorestamentos, ser transformado em objeto de especulação financeira e comercial internacional.Os mega-investidores, mais uma vez em conluio com os governos locais, preparam a desmaterialização das economias. Unem-se com as empresas produtoras de gás carbônico e propõem que elas paguem o reflorestamento de áreas onde houver terras e mão-de-obra baratas.Com isso, são criadas "quotas" de pagamento para os reflorestamentos de fixação de gás carbônico, o que permite as empresas continuarem lançando efluentes sem diminuir sua produção e poluição.É assim que a Shell, por exemplo, já têm milhares de hectares no Uruguai e Argentina, onde foram retiradas matas naturais para instalar os "sumidouros de carbono".Entre nós, empresas e governos querem que os "reflorestamento de sumidouros de carbono" sejam feitos em nosso espaço e natureza, mas na verdade subsidiando o custeio e investimento de plantios de eucaliptos, matérias-primas para celulose, através de conluio entre empresas e governos.O dinheiro para tal reflorestamento não sai do Norte, girando e enriquecendo a economia deles, ao passo que ocupa um espaço, pressiona a natureza do Sul.Ganham triplamente, pois: a) podem poluir através das quotas pagas; b) somam uma área plantada para matéria-prima como se fosse amenizar a mudança climática por fixação de carbono e, c) usam o marketing verde, que sua celulose é fruto do projeto de amenizar a mudança climática que eles mesmos promovem.Obviamente que os corruptos recebem sua crema (moeda), mas perdemos triplamente, pois nossos alimentos ficam mais caros ao haver escassez de terras para plantá-los; teremos menos agricultores dedicados à agricultura e perdemos os recursos para a fixação através dos sumidouros de carbono.O mar do Espírito Santo fixa 15 vezes mais gás carbônico que a terra. Não seria mais importante que os "sumidouros de carbono" fossem marinhos? Teríamos mais pesca, mais economia. Contudo, a família Globo quer destruir as algas calcáreas para extrair (minerar) "Lithotamium".VIII - LIBERAR VERSUS CONTROLARÉ aqui que entra o zoneamento agro-ecológico; zoneamento que Rondônia, Amapá e Mato Grosso do Sul foram obrigados a priorizar, com medo de perder investimentos externos.Zoneamento que, por respeito à Mata Atlântica e Bacia Pesqueira, deveria ser priorizado também no Espírito Santo, pois ele é ciência, é geração de trabalho e tecnologia, e prestação de serviços, desmaterializando a economia, para a Humanidade, conforme a Agenda 21.Mas que a empresa de celulose não quer que se desmaterialize, pois ela nos quer meros objetos. Seu eucalipto não é bom ou mau. Ele causa impactos.Por isso, devemos perguntar ao pequeno agricultor, assentado ou indígena e comunidade capixaba: se a empresa fosse obrigada a respeitar e pagar, de fato, que cada hectare com eucalipto recuperasse ou restaurasse três hectares de Mata Atlântica, isto seria bom para quem?Seria bom para a biodiversidade e estamos falando em economia e não em crematística. Seria ótimo para o agricultor que manteria sua renda, autonomia e liberdade. Estamos falando em felicidade, não em riqueza.Mas não sejamos ingênuos. Os governos são heteronômicos, obseqüentes e corruptos para evitar que esta desmaterialização aconteça.A empresa planeja usar o marketing do produto da fixação do gás carbônico, e ela fará as suas reservas, não pela Mata, mas pelo valor crematístico da biodiversidade que irá vender para exploração e tudo continua na mesma e para pior.Usará os agricultores em servidão como objeto de marketing de homem da Mata Atlântica protegido e integrado, de forma muito similar como hoje já ocorre na cultura do fumo, frango, suíno. É o complexo Agro-Industrial-Alimentar-Financeiro, que não pode ter terra ou eucalipto, mas que transfere ao pequeno agricultor familiar - terceirizado - esta função, em servidão aos seus interesses monopsônicos.Quem se posicionar contra seus interesses, como no caso do projeto de zoneamento agroecológico, tem contra si os instrumentos de ódio e relativismo moral.IX - NATUREZA VERSUS MERCADOA água é a crise dos próximos 66 anos. A criação da Agência Nacional das Águas (ANA) dá valor crematístico. Agora a água é uma "commodity".Não seria importante ter-se, a exemplo da África do Sul, um zoneamento hidro-ecológico-climático sobre a economia da água pelo eucalipto nos diferentes municípios do Espírito Santo, principalmente nos banhados pelo oceano, onde se fixa quinze vezes mais gás carbônico e nasce a água doce em crise?. A primeira reação dos segmentos de interesse é dizer que quem pede isto é contra a empresa, contra o progresso.Depois, há uma orquestração vendendo está imagem e muito dinheiro é gasto para que não haja consciência.Quando propusemos um debate franco e objetivo sobre a necessidade do Zoneamento Agro-ecológico, que é o pano de fundo deste Seminário Internacional, o fizemos interessados em debater o tema de forma clara transparente, honrada, inteligente, pois queremos a qualidade e a precaução preconizada na Agenda 21.Na mesa não há temor. Contudo, tememos muito as empresas nas ante-salas do poder, atrás das cortinas e biombos ou junto às eminências pardas, que traficam o poder público.Tememos muito mais a mediocridade que confunde Estado com Governo e os verdadeiros caminhos para a modernidade, sujeito, cidadania e democracia.Descaminhos são subterfúgios de medíocres que fogem ao debate e querem que o Estado Nacional continue sendo seu feudo e balcão de seus negócios, muitas vezes opacos ou escusos.

domingo, 9 de agosto de 2009

Pele Negra, Cara Pálida.

O poder hegemônico eurocêntrico que se estabeleceu desde a colonização das Américas tem sido objeto de discussão tanto no Norte como no Sul.
Os problemas decorrentes do processo de colonização refletem-se na América Latina nos mais diversos segmentos sociais, em especial no que diz respeito à democracia, política, direito, cultura, etnia, etc.
As formas democráticas têm sido reduzidas ao sufrágio universal, as políticas sociais são extremamente tímidas diante de suas reais demandas, as etnias discriminadas, as culturas aniquiladas e o discurso jurídico provêm de um poder monológico e secularizado, no qual a racionalidade secular é perfeitamente percebida e legitima todas as formas de exclusão.
A questão da globalização econômica ou modernização capitalista apresenta características que se iniciaram com a colonização das Américas. Tal modernização tem perpetuado as formas com que se têm tratado as diferenças. A começar pelo discurso jurídico secular que perpetuou a discriminação dos negros e dos povos indígenas.
O Código Civil brasileiro até 2002 referia-se aos povos indígenas como silvícolas, ou seja, selvagens. O povo “selvagem” diz respeito ao não-branco, considerado no imaginário jurídico eurocêntrico como “inferior”
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O estigma da inferioridade do sujeito latino americano permanece ainda hoje nas mais diversas formas de exclusão, havendo, ainda, uma estigmatização interna em relação às etnias e às condições sociais.
É possível observar que a maioria da população carcerária no Brasil é composta por negros e mestiços, enquanto o número de brancos encarcerados é extremamente reduzido.
Tal postura decorre das formas como são naturalizadas as exclusões e dominações internas. A legislação tende a criminalizar delitos que são quase exclusivamente cometidos por pobres e a descriminalizar ou diminuir a pena de delitos cometidos por pessoas com maior poder aquisitivo. No discurso jurídico brasileiro tenta-se criminalizar os movimentos sociais, denunciá-los como antijurídicos. É a postura que temos presenciado em relação ao MST, por exemplo.
A reprodução do discurso jurídico secular moderno na América Latina tem propiciado um direito excludente e distorcido da nossa realidade.
Nesse contexto, podemos perceber que o problema da dominação tem sido transferido do campo do Mercado e do Estado para o campo da Ciência e do Direito. Tanto a ciência como o direito foram se tornando eixos de regulação na medida em que a modernidade se desenvolvia. (AVRITZER, LEANDRO. Globalização e espaços públicos, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, outubro de 2002.RCCS: Coimbra, p.110).
A modernidade que surge na passagem de um mundo medieval feudal para um mundo de múltiplas possibilidades, logo tomou a forma de regulação, anulando seu potencial emancipatório: “(...) promovidas pela rápida conversão da ciência em força produtiva, os critérios científicos de eficiência e eficácia logo se tornaram hegemônicos, ao ponto de colonizarem gradualmente os critérios racionais das outras lógicas emancipatórias” (SANTOS, BOAVENTURA. Crítica da Razão indolente, 2000, p. 51).
O fato de buscarmos nas formas européias os conceitos de organização jurídica e política tem sido extremamente problemático, uma vez que continuamos a nos espelhar no modelo que nos excluiu e escravizou, reproduzindo, pois, a mesma exclusão dentro de um sistema colonizador interno, no qual as classes sociais mais abastadas, mantém a exploração do trabalho por continuar a enxergar a “inferioridade” dos povos negros, mestiços, índios e pobres.
De outro lado, os nossos colonizadores portugueses e espanhóis, foram colonizadores fracos, uma vez que o império ibérico foi curto, entre os séculos XV e XVII, diferentemente da colonização inglesa que se impôs aos seus colonizados, transformando suas colônias por muito mais tempo. A partir do século XVII, os colonizadores ibéricos, diante de seu enfraquecimento imperial e subordinado aos ingleses, entregaram suas colônias à própria sorte (SANTOS), subordinando-se também aos ingleses e franceses. Assim, fomos também sub-colonizados, diante da influência capitalista moderna dos ingleses e do pensamento secular dos franceses.
Nesse contexto histórico, a América Latina, abandonada à própria sorte e, ainda que tenha sido vítima da reprodução das formas exploratórias tradicionais internamente, conseguiu na marginalização periférica criar uma cultura própria, carnavalizada e criativa, que pode ser o caminho para a sua emancipação pós-colonial.
A violência que caracterizou a nossa colonização é uma história triste e de horror, contada pelos vencedores e não pelos vencidos, cujo final já é conhecido, mas que pode ter dias felizes a partir de uma nova face integradora e emancipatória de povos que não têm tido a oportunidade de contar sua própria história.


A TEMPORALIDADE, A LINGUAGEM E A RAÇA: O SURGIMENTO DA HIERAQUIA DOS POVOS

O mundo cristão baseia-se na questão entre a separação do corpo e da alma. Com Descartes, essa separação levou ao triunfo a idéia de que o corpo estaria ligado à natureza, ao passo que a alma à razão. Nesse sentido, o corpo foi levado a objeto do conhecimento, enquanto a alma objeto da razão.
A secularização ocorre nesse contexto. A preocupação com a razão e, portanto, com a alma, culmina na apropriação do que é racional, reduzindo o tempo ao tempo do que é considerado civilizado e dotado de razão. Assim, a razão humana está vinculada ao pensamento europeu de uma ordem racional e dita civilizada.
O pensador peruano Mariátegui disse que a voz do mundo moderno propõe seu mito fictício e precário: a Razão (1963).
A redução do pensamento humano à razão instrumental, proveniente de um processo secular, levou os europeus colonizadores a questionar se os povos descobertos eram ou não dotados de razão e, portanto, de alma. Havia, ainda, um questionamento se eram ou não humanos.
A idéia de humano derivava do conhecimento que os europeus tinham de sua própria civilização. Ao chegar à América, surpreenderam-se ao encontrar pessoas.
No entanto, surpreenderam-se ainda mais ao ver que aquelas pessoas não mostraram resistência, ao contrário, desde o início mostraram-se hospitaleiros, sem maldade ou pecados como fora descrito na carta de Pero Vaz de Caminha.
Os colonizadores, ao chegar ao Brasil e, ao sentir que o povo que aqui habitava era de paz, logo pensou em “civilizar” a gente inocente que não conhecia os mandamentos cristãos e, sem ter-lhes como obrigar a qualquer coisa, pois eram em menor número e por terem sido amistosamente recebidos concluíram que da terra de Vera Cruz: “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.” (Cara de Pero Vaz de Caminha)
O mundo indígena não tinha a mesma noção de tempo, tampouco da separação entre corpo e alma, entre homem e natureza. Para os povos indígenas, a natureza tem uma conotação criadora.
Na Pacha mama, homem e natureza é uma coisa só.
A diferença entre o Norte e o Sul é uma diferença de tipo colonial que tem como diferença religião, cultura, cor da pele. As colônias eram vistas como as terras que habitavam os não humanos (escravos, indígenas) a zona do não-ser.
Enquanto o Norte significava a fonte de bem de valor, contrapondo-se verticalmente ao Sul como o não bem. O pensamento colonizador colocou o branco e o não branco de forma antagônica, na expressão do que é humano.
A inferiorização dos povos latino americanos diante dos europeus se consagrou na própria língua, uma vez que aqui não havia uma língua escrita, apenas falada. A linguagem dos indígenas foi aniquilada pela língua portuguesa e espanhola.
Nesse sentido, só era possível pensar racionalmente a partir da linguagem colonizadora.
O processo de catequização dos povos indígenas incluiu o ensino das línguas portuguesas e espanholas, bem como a vestimenta européia.
A pintura em tela que caracteriza a primeira missa celebrada no Brasil, os índios aparecem cobrindo “suas vergonhas” (na linguagem de Pero Vaz de Caminha), embora não houvesse, naquele momento, nenhum relato que os portugueses teriam os obrigado a se cobrir (GOMES). Até porque tinham receio de qualquer rebelião daquele povo quando aqui chegaram, pois os portugueses eram minoria em número.
A questão do corpo como objeto de conhecimento fez com que os colonizadores, ao se depararem com diferenças fenotípicas e culturais, analisassem o conceito de raça. A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem uma histórica conhecida antes da América.
A formação das relações sociais fundamentadas nessa idéia acabou produzindo na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros, mestiços, além de ser responsável pela redefinição de outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, passaram a receber também uma conotação racial, relativa às novas identidades (QUIJANO). E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes a cada um e interpretadas como dominantes destas e, portanto, do padrão de dominação colonial que se impunha.
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, IDEM, P. 37)
Na América do Norte a questão da cor foi definida de forma mais intensa, pois os índios não fizeram parte dessa colonização, pois os poucos povos que ali estiveram foram logo exterminados. Daí a separação entre branco e negro.
Já na América Latina, sendo os brancos os colonizadores, dotados de uma racionalidade secular, os negros, índios e mestiços foram reduzidos à “inferioridade” pela diferença e, também, por serem considerados não dotados de razão e, portanto, não dotados de alma e passíveis de escravidão.
A idéia de que os povos colonizados tinham alma advém da Bula Sublimis Deus, promulgada em 1537 pelo Papa Paulo III. Porém o reconhecimento da alma dos povos selvagens se deu como um receptáculo vazio, uma anima nullius, o que justificou o extermínio dos povos indígenas que não se submeteram à catequese jesuítica.
Mesmo assim, muitos dos colonizadores duvidavam da possibilidade dos índios terem alma, principalmente diante das práticas canibais dos tupinambás.

Além disso, o extermínio dos povos caribenhos e mexicanos já havia ocorrido quando da declaração da Igreja Católica sobre o reconhecimento de os índios serem capazes de entender a fé católica e a declaração do Papa foi ignorada por haver divergência quanto a ela.
No Brasil, os caraíbas representavam perigo na leitura dos jesuítas, pois em seus rituais xamânicos causavam euforia nos outros índios e, portanto, precisavam ser destruídos. De outro lado, havia um certo fetiche entre os povos indígenas e os europeus, em especial entre os franceses que não raras vezes expunham os índios como animais pela Europa, chegando a celebrar casamentos com eles.
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No início, a exploração indígena se dava por meio de trocas. A troca pela extração do pau-brasil pelos índios era feita pelo escambo de outros bens. Posteriormente, os portugueses confinaram os índios em aldeias explorando de forma mais intensa a sua mão-de-obra não remunerada.
De qualquer forma, tanto os portugueses como os franceses não se sentiam constrangidos em utilizar-se dos índios como lucro fácil, já que eles proporcionavam a extração das riquezas do Brasil para a Europa.
Outra questão importante que se estabelece é a de gênero, na ótica da inferioridade dos povos, inferior ainda mais estavam as mulheres negras e indígenas que eram vistas na forma de servidão sexual.
Assim, a questão da raça foi determinante para legitimar o poder europeu na América do Sul, a escravidão e a exploração do trabalho dos povos não europeus. Isso naturalizou o pensamento secular nas questões de dominação hierárquica entre amo e escravo, brancos e não brancos, colonizadores e colonizados.
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Mais tarde, quando o Brasil, enquanto colônia portuguesa se estabeleceu na produção de açúcar, a conversão na fé católica passou a ser uma condição indispensável na organização jurídica da colônia.
“ (...) as instruções para separar os índios cristãos dos “outros”, os selvagens e organizá-los em aldeias próximas às vilas portuguesas, assim como a firmeza que se devia aplicar punições aos índios que se alevantassem contra os portugueses. De modo que, quando se fez necessário, o braço forte do poder português, nem Tomé de Souza, nem os seguintes governadores gerais se sentiram impedidos moral ou religiosamente de atacar as aldeias, matar, saquear e aprisionar homens, mulheres e crianças, e, em alguns casos, pretender exterminar povos inteiros (como os casos dos caetés e aimorés). Com efeito, poucos anos depois de chegar as terras brasileiras, o reverendo padre Manuel da Nóbrega, prior dos jesuítas no Brasil, ajudou a planejar e exaltou as virtudes excelsas de Mem de Sá, terceiro governador geral do Brasil (1558-1572), quando este atacou e arrasou as aldeias de tupinambás alevantadas no recôncavo Bahiano. José de Anchieta, o sensível missionário que escreveu peças de teatro para melhor ensinar os tupinambás a se tornarem cristãos, lavrou também um panegírico em latim desses feitos guerreiros, Des Gestis Meens De Saa, que ainda hoje ressoa como um opróbrio ao seu papel de missionário, de ser levado à canonização papal.” (GOMES, p. 426)

A naturalização hierárquica culminou na naturalização de quem trabalha e de quem recebe os proventos da produção. Isso se pode constatar, ainda hoje, na legislação trabalhista dos países do Sul, cujos direitos são muito mais desfavoráveis aos trabalhadores em comparação aos países do Norte, onde os trabalhadores que lutaram por direitos sociais, tinham seu reconhecimento “branco” ou “europeu” consagrados na racionalidade proveniente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
O não reconhecimento humano dos povos latino-americanos fez com que a exploração do trabalho e a idéia de inferioridade dos povos se perpetuassem na exploração do trabalho e no não reconhecimento de suas identidades.
A marginalização e a idéia de “terceiro mundo” provêm do colonialismo eurocêntrico, o qual tem suas origens na Europa enquanto centro e, posteriormente, na América do Norte.
Assim, diversidade dos povos indígenas foi reduzida a uma única raça: o índio.
A América Latina, por sua vez, era composta por uma enorme diversidade de povos. No Brasil, os povos autóctones americanos somavam mais de cinco milhões de indivíduos divididos em seiscentos povos com culturas próprias e falantes de línguas próprias. (GOMES, Mércio Pereira: A História da Cidadania p. 420).
Os povos indígenas foram aglomerados pelos missionários jesuítas e submetidos ao trabalho não assalariado, embora formalmente livres.
Os indígenas ao se relacionarem com os portugueses, espanhóis e negros deram origem aos mestiços: mamelucos, cafuzos, caboclos, mulatos, caipiras e uma série de mestiços que compunha uma classe de gente pobre e subordinada que, ainda hoje, representa a maior parte da população brasileira.
A especificidade do colonialismo português assenta basicamente em razões de economia política – a sua condição semiperiférica -, o que não significa que esta tenha se manifestado apenas no plano econômico. Ao contrário, manifestou-se, igualmente, nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas cotidianas de convivência e de sobrevivência, de opressão e de resistência, de proximidade e de distância, no plano dos discursos e narrativas, no plano do senso comum e de outros saberes (SANTOS,p.215).
A organização social no Brasil e na América Latina se deu de forma extremamente racista e excludente. É possível observar que os europeus brancos não tiveram o mesmo tratamento em relação aos povos negros e indígenas, cuja condição humana desses últimos sempre foi cruel e degradante. A bestialização dos trabalhadores, indígenas e negros, assim como a escravidão negra e por dívidas na América Espanhola e na América Portuguesa, marcaram essencialmente a sociedade latino-americana.(Vieira, 2002, p.67).
Historicamente, a pobreza corresponde à inferioridade e humilhação. Com exceção da Idade Média em que havia um reconhecimento espiritual de humildade, pela influência cristã da Igreja.
Nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado, que marca profundamente a identidade de todos que viviam essa experiência. O pobre sempre foi portador de uma condição humilhante, mas, na civilização cristã medieval, todas as ideologias se reportam à Sagrada Escritura e reconhecem o valor espiritual da humildade e da abnegação. Paralelamente a essa doutrina da pobreza, elogia-se a caridade, considerada como um dever geral, pois os ricos não têm outra razão de estar na Igreja senão dar alívio aos pobres. Na mentalidade coletiva moderna, pelo contrário, a pobreza é percebida apenas de modo negativo. (...) Nas sociedades que transformam o sucesso em valor supremo e em que predomina o discurso justificador da riqueza, a pobreza é o símbolo do fracasso social e freqüentemente se traduz na existência humana por degradação moral. (Paugan, 2003, 45-46)

A sujeição das metrópoles ibéricas às grandes potências econômicas do período colonial, a necessidade do capital para bancar os altos custos de manutenção da máquina estatal, o modelo implantado na América, baseado na exploração da mão-de-obra escrava negra e indígena e do latifúndio, possibilitou a conjunção de fatores que formaram o perfil da sociedade moderna: os proprietários, ligados à classe política/econômica dominante, beneficiários do sistema de exploração colonial, e os trabalhadores diferenciados, sobretudo pela cor da pele. O burocratismo implantado no Estado mascarava o benefício privado e a Igreja, instituição de presença marcante no Novo Mundo, corroborava com o sistema de dominação.
Na América Latina, onde a independência das nações foi ato reservado à aristocracia, as mudanças restringiram-se à fachada jurídico/política – a classe dominante local consolidou seu poder livrando-se do “sócio incômodo”, não havendo qualquer alteração no cisma social estabelecido durante ou após a independência.
Na América de espanhóis e portugueses, a representação política ficou restrita a um ato burocrático e as políticas sociais sempre foram contidas pela omissão ou pela ação dos governos.
Assim formou-se a noção geral do povo latino-americano: bárbaro, inferior, primitivo, mestiço, pobre, indolente. Incapaz em sua forma econômica, política e social.


"Eu gostaria muito de ter o direito, eu também, de ser simples e muito fraca, de ser mulher."
"Sou muito inteligente, muito exigente e muito engenhosa para alguém ser capaz de se encarregar completamente de mim. Ninguém me conhece nem me ama completamente. Só tenho a mim."
Simone de Beauvoir, em seu diário.