domingo, 9 de agosto de 2009

Pele Negra, Cara Pálida.

O poder hegemônico eurocêntrico que se estabeleceu desde a colonização das Américas tem sido objeto de discussão tanto no Norte como no Sul.
Os problemas decorrentes do processo de colonização refletem-se na América Latina nos mais diversos segmentos sociais, em especial no que diz respeito à democracia, política, direito, cultura, etnia, etc.
As formas democráticas têm sido reduzidas ao sufrágio universal, as políticas sociais são extremamente tímidas diante de suas reais demandas, as etnias discriminadas, as culturas aniquiladas e o discurso jurídico provêm de um poder monológico e secularizado, no qual a racionalidade secular é perfeitamente percebida e legitima todas as formas de exclusão.
A questão da globalização econômica ou modernização capitalista apresenta características que se iniciaram com a colonização das Américas. Tal modernização tem perpetuado as formas com que se têm tratado as diferenças. A começar pelo discurso jurídico secular que perpetuou a discriminação dos negros e dos povos indígenas.
O Código Civil brasileiro até 2002 referia-se aos povos indígenas como silvícolas, ou seja, selvagens. O povo “selvagem” diz respeito ao não-branco, considerado no imaginário jurídico eurocêntrico como “inferior”
[1].
O estigma da inferioridade do sujeito latino americano permanece ainda hoje nas mais diversas formas de exclusão, havendo, ainda, uma estigmatização interna em relação às etnias e às condições sociais.
É possível observar que a maioria da população carcerária no Brasil é composta por negros e mestiços, enquanto o número de brancos encarcerados é extremamente reduzido.
Tal postura decorre das formas como são naturalizadas as exclusões e dominações internas. A legislação tende a criminalizar delitos que são quase exclusivamente cometidos por pobres e a descriminalizar ou diminuir a pena de delitos cometidos por pessoas com maior poder aquisitivo. No discurso jurídico brasileiro tenta-se criminalizar os movimentos sociais, denunciá-los como antijurídicos. É a postura que temos presenciado em relação ao MST, por exemplo.
A reprodução do discurso jurídico secular moderno na América Latina tem propiciado um direito excludente e distorcido da nossa realidade.
Nesse contexto, podemos perceber que o problema da dominação tem sido transferido do campo do Mercado e do Estado para o campo da Ciência e do Direito. Tanto a ciência como o direito foram se tornando eixos de regulação na medida em que a modernidade se desenvolvia. (AVRITZER, LEANDRO. Globalização e espaços públicos, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, outubro de 2002.RCCS: Coimbra, p.110).
A modernidade que surge na passagem de um mundo medieval feudal para um mundo de múltiplas possibilidades, logo tomou a forma de regulação, anulando seu potencial emancipatório: “(...) promovidas pela rápida conversão da ciência em força produtiva, os critérios científicos de eficiência e eficácia logo se tornaram hegemônicos, ao ponto de colonizarem gradualmente os critérios racionais das outras lógicas emancipatórias” (SANTOS, BOAVENTURA. Crítica da Razão indolente, 2000, p. 51).
O fato de buscarmos nas formas européias os conceitos de organização jurídica e política tem sido extremamente problemático, uma vez que continuamos a nos espelhar no modelo que nos excluiu e escravizou, reproduzindo, pois, a mesma exclusão dentro de um sistema colonizador interno, no qual as classes sociais mais abastadas, mantém a exploração do trabalho por continuar a enxergar a “inferioridade” dos povos negros, mestiços, índios e pobres.
De outro lado, os nossos colonizadores portugueses e espanhóis, foram colonizadores fracos, uma vez que o império ibérico foi curto, entre os séculos XV e XVII, diferentemente da colonização inglesa que se impôs aos seus colonizados, transformando suas colônias por muito mais tempo. A partir do século XVII, os colonizadores ibéricos, diante de seu enfraquecimento imperial e subordinado aos ingleses, entregaram suas colônias à própria sorte (SANTOS), subordinando-se também aos ingleses e franceses. Assim, fomos também sub-colonizados, diante da influência capitalista moderna dos ingleses e do pensamento secular dos franceses.
Nesse contexto histórico, a América Latina, abandonada à própria sorte e, ainda que tenha sido vítima da reprodução das formas exploratórias tradicionais internamente, conseguiu na marginalização periférica criar uma cultura própria, carnavalizada e criativa, que pode ser o caminho para a sua emancipação pós-colonial.
A violência que caracterizou a nossa colonização é uma história triste e de horror, contada pelos vencedores e não pelos vencidos, cujo final já é conhecido, mas que pode ter dias felizes a partir de uma nova face integradora e emancipatória de povos que não têm tido a oportunidade de contar sua própria história.


A TEMPORALIDADE, A LINGUAGEM E A RAÇA: O SURGIMENTO DA HIERAQUIA DOS POVOS

O mundo cristão baseia-se na questão entre a separação do corpo e da alma. Com Descartes, essa separação levou ao triunfo a idéia de que o corpo estaria ligado à natureza, ao passo que a alma à razão. Nesse sentido, o corpo foi levado a objeto do conhecimento, enquanto a alma objeto da razão.
A secularização ocorre nesse contexto. A preocupação com a razão e, portanto, com a alma, culmina na apropriação do que é racional, reduzindo o tempo ao tempo do que é considerado civilizado e dotado de razão. Assim, a razão humana está vinculada ao pensamento europeu de uma ordem racional e dita civilizada.
O pensador peruano Mariátegui disse que a voz do mundo moderno propõe seu mito fictício e precário: a Razão (1963).
A redução do pensamento humano à razão instrumental, proveniente de um processo secular, levou os europeus colonizadores a questionar se os povos descobertos eram ou não dotados de razão e, portanto, de alma. Havia, ainda, um questionamento se eram ou não humanos.
A idéia de humano derivava do conhecimento que os europeus tinham de sua própria civilização. Ao chegar à América, surpreenderam-se ao encontrar pessoas.
No entanto, surpreenderam-se ainda mais ao ver que aquelas pessoas não mostraram resistência, ao contrário, desde o início mostraram-se hospitaleiros, sem maldade ou pecados como fora descrito na carta de Pero Vaz de Caminha.
Os colonizadores, ao chegar ao Brasil e, ao sentir que o povo que aqui habitava era de paz, logo pensou em “civilizar” a gente inocente que não conhecia os mandamentos cristãos e, sem ter-lhes como obrigar a qualquer coisa, pois eram em menor número e por terem sido amistosamente recebidos concluíram que da terra de Vera Cruz: “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.” (Cara de Pero Vaz de Caminha)
O mundo indígena não tinha a mesma noção de tempo, tampouco da separação entre corpo e alma, entre homem e natureza. Para os povos indígenas, a natureza tem uma conotação criadora.
Na Pacha mama, homem e natureza é uma coisa só.
A diferença entre o Norte e o Sul é uma diferença de tipo colonial que tem como diferença religião, cultura, cor da pele. As colônias eram vistas como as terras que habitavam os não humanos (escravos, indígenas) a zona do não-ser.
Enquanto o Norte significava a fonte de bem de valor, contrapondo-se verticalmente ao Sul como o não bem. O pensamento colonizador colocou o branco e o não branco de forma antagônica, na expressão do que é humano.
A inferiorização dos povos latino americanos diante dos europeus se consagrou na própria língua, uma vez que aqui não havia uma língua escrita, apenas falada. A linguagem dos indígenas foi aniquilada pela língua portuguesa e espanhola.
Nesse sentido, só era possível pensar racionalmente a partir da linguagem colonizadora.
O processo de catequização dos povos indígenas incluiu o ensino das línguas portuguesas e espanholas, bem como a vestimenta européia.
A pintura em tela que caracteriza a primeira missa celebrada no Brasil, os índios aparecem cobrindo “suas vergonhas” (na linguagem de Pero Vaz de Caminha), embora não houvesse, naquele momento, nenhum relato que os portugueses teriam os obrigado a se cobrir (GOMES). Até porque tinham receio de qualquer rebelião daquele povo quando aqui chegaram, pois os portugueses eram minoria em número.
A questão do corpo como objeto de conhecimento fez com que os colonizadores, ao se depararem com diferenças fenotípicas e culturais, analisassem o conceito de raça. A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem uma histórica conhecida antes da América.
A formação das relações sociais fundamentadas nessa idéia acabou produzindo na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros, mestiços, além de ser responsável pela redefinição de outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, passaram a receber também uma conotação racial, relativa às novas identidades (QUIJANO). E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes a cada um e interpretadas como dominantes destas e, portanto, do padrão de dominação colonial que se impunha.
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, IDEM, P. 37)
Na América do Norte a questão da cor foi definida de forma mais intensa, pois os índios não fizeram parte dessa colonização, pois os poucos povos que ali estiveram foram logo exterminados. Daí a separação entre branco e negro.
Já na América Latina, sendo os brancos os colonizadores, dotados de uma racionalidade secular, os negros, índios e mestiços foram reduzidos à “inferioridade” pela diferença e, também, por serem considerados não dotados de razão e, portanto, não dotados de alma e passíveis de escravidão.
A idéia de que os povos colonizados tinham alma advém da Bula Sublimis Deus, promulgada em 1537 pelo Papa Paulo III. Porém o reconhecimento da alma dos povos selvagens se deu como um receptáculo vazio, uma anima nullius, o que justificou o extermínio dos povos indígenas que não se submeteram à catequese jesuítica.
Mesmo assim, muitos dos colonizadores duvidavam da possibilidade dos índios terem alma, principalmente diante das práticas canibais dos tupinambás.

Além disso, o extermínio dos povos caribenhos e mexicanos já havia ocorrido quando da declaração da Igreja Católica sobre o reconhecimento de os índios serem capazes de entender a fé católica e a declaração do Papa foi ignorada por haver divergência quanto a ela.
No Brasil, os caraíbas representavam perigo na leitura dos jesuítas, pois em seus rituais xamânicos causavam euforia nos outros índios e, portanto, precisavam ser destruídos. De outro lado, havia um certo fetiche entre os povos indígenas e os europeus, em especial entre os franceses que não raras vezes expunham os índios como animais pela Europa, chegando a celebrar casamentos com eles.
[3]
No início, a exploração indígena se dava por meio de trocas. A troca pela extração do pau-brasil pelos índios era feita pelo escambo de outros bens. Posteriormente, os portugueses confinaram os índios em aldeias explorando de forma mais intensa a sua mão-de-obra não remunerada.
De qualquer forma, tanto os portugueses como os franceses não se sentiam constrangidos em utilizar-se dos índios como lucro fácil, já que eles proporcionavam a extração das riquezas do Brasil para a Europa.
Outra questão importante que se estabelece é a de gênero, na ótica da inferioridade dos povos, inferior ainda mais estavam as mulheres negras e indígenas que eram vistas na forma de servidão sexual.
Assim, a questão da raça foi determinante para legitimar o poder europeu na América do Sul, a escravidão e a exploração do trabalho dos povos não europeus. Isso naturalizou o pensamento secular nas questões de dominação hierárquica entre amo e escravo, brancos e não brancos, colonizadores e colonizados.
[4]
Mais tarde, quando o Brasil, enquanto colônia portuguesa se estabeleceu na produção de açúcar, a conversão na fé católica passou a ser uma condição indispensável na organização jurídica da colônia.
“ (...) as instruções para separar os índios cristãos dos “outros”, os selvagens e organizá-los em aldeias próximas às vilas portuguesas, assim como a firmeza que se devia aplicar punições aos índios que se alevantassem contra os portugueses. De modo que, quando se fez necessário, o braço forte do poder português, nem Tomé de Souza, nem os seguintes governadores gerais se sentiram impedidos moral ou religiosamente de atacar as aldeias, matar, saquear e aprisionar homens, mulheres e crianças, e, em alguns casos, pretender exterminar povos inteiros (como os casos dos caetés e aimorés). Com efeito, poucos anos depois de chegar as terras brasileiras, o reverendo padre Manuel da Nóbrega, prior dos jesuítas no Brasil, ajudou a planejar e exaltou as virtudes excelsas de Mem de Sá, terceiro governador geral do Brasil (1558-1572), quando este atacou e arrasou as aldeias de tupinambás alevantadas no recôncavo Bahiano. José de Anchieta, o sensível missionário que escreveu peças de teatro para melhor ensinar os tupinambás a se tornarem cristãos, lavrou também um panegírico em latim desses feitos guerreiros, Des Gestis Meens De Saa, que ainda hoje ressoa como um opróbrio ao seu papel de missionário, de ser levado à canonização papal.” (GOMES, p. 426)

A naturalização hierárquica culminou na naturalização de quem trabalha e de quem recebe os proventos da produção. Isso se pode constatar, ainda hoje, na legislação trabalhista dos países do Sul, cujos direitos são muito mais desfavoráveis aos trabalhadores em comparação aos países do Norte, onde os trabalhadores que lutaram por direitos sociais, tinham seu reconhecimento “branco” ou “europeu” consagrados na racionalidade proveniente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
O não reconhecimento humano dos povos latino-americanos fez com que a exploração do trabalho e a idéia de inferioridade dos povos se perpetuassem na exploração do trabalho e no não reconhecimento de suas identidades.
A marginalização e a idéia de “terceiro mundo” provêm do colonialismo eurocêntrico, o qual tem suas origens na Europa enquanto centro e, posteriormente, na América do Norte.
Assim, diversidade dos povos indígenas foi reduzida a uma única raça: o índio.
A América Latina, por sua vez, era composta por uma enorme diversidade de povos. No Brasil, os povos autóctones americanos somavam mais de cinco milhões de indivíduos divididos em seiscentos povos com culturas próprias e falantes de línguas próprias. (GOMES, Mércio Pereira: A História da Cidadania p. 420).
Os povos indígenas foram aglomerados pelos missionários jesuítas e submetidos ao trabalho não assalariado, embora formalmente livres.
Os indígenas ao se relacionarem com os portugueses, espanhóis e negros deram origem aos mestiços: mamelucos, cafuzos, caboclos, mulatos, caipiras e uma série de mestiços que compunha uma classe de gente pobre e subordinada que, ainda hoje, representa a maior parte da população brasileira.
A especificidade do colonialismo português assenta basicamente em razões de economia política – a sua condição semiperiférica -, o que não significa que esta tenha se manifestado apenas no plano econômico. Ao contrário, manifestou-se, igualmente, nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas cotidianas de convivência e de sobrevivência, de opressão e de resistência, de proximidade e de distância, no plano dos discursos e narrativas, no plano do senso comum e de outros saberes (SANTOS,p.215).
A organização social no Brasil e na América Latina se deu de forma extremamente racista e excludente. É possível observar que os europeus brancos não tiveram o mesmo tratamento em relação aos povos negros e indígenas, cuja condição humana desses últimos sempre foi cruel e degradante. A bestialização dos trabalhadores, indígenas e negros, assim como a escravidão negra e por dívidas na América Espanhola e na América Portuguesa, marcaram essencialmente a sociedade latino-americana.(Vieira, 2002, p.67).
Historicamente, a pobreza corresponde à inferioridade e humilhação. Com exceção da Idade Média em que havia um reconhecimento espiritual de humildade, pela influência cristã da Igreja.
Nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado, que marca profundamente a identidade de todos que viviam essa experiência. O pobre sempre foi portador de uma condição humilhante, mas, na civilização cristã medieval, todas as ideologias se reportam à Sagrada Escritura e reconhecem o valor espiritual da humildade e da abnegação. Paralelamente a essa doutrina da pobreza, elogia-se a caridade, considerada como um dever geral, pois os ricos não têm outra razão de estar na Igreja senão dar alívio aos pobres. Na mentalidade coletiva moderna, pelo contrário, a pobreza é percebida apenas de modo negativo. (...) Nas sociedades que transformam o sucesso em valor supremo e em que predomina o discurso justificador da riqueza, a pobreza é o símbolo do fracasso social e freqüentemente se traduz na existência humana por degradação moral. (Paugan, 2003, 45-46)

A sujeição das metrópoles ibéricas às grandes potências econômicas do período colonial, a necessidade do capital para bancar os altos custos de manutenção da máquina estatal, o modelo implantado na América, baseado na exploração da mão-de-obra escrava negra e indígena e do latifúndio, possibilitou a conjunção de fatores que formaram o perfil da sociedade moderna: os proprietários, ligados à classe política/econômica dominante, beneficiários do sistema de exploração colonial, e os trabalhadores diferenciados, sobretudo pela cor da pele. O burocratismo implantado no Estado mascarava o benefício privado e a Igreja, instituição de presença marcante no Novo Mundo, corroborava com o sistema de dominação.
Na América Latina, onde a independência das nações foi ato reservado à aristocracia, as mudanças restringiram-se à fachada jurídico/política – a classe dominante local consolidou seu poder livrando-se do “sócio incômodo”, não havendo qualquer alteração no cisma social estabelecido durante ou após a independência.
Na América de espanhóis e portugueses, a representação política ficou restrita a um ato burocrático e as políticas sociais sempre foram contidas pela omissão ou pela ação dos governos.
Assim formou-se a noção geral do povo latino-americano: bárbaro, inferior, primitivo, mestiço, pobre, indolente. Incapaz em sua forma econômica, política e social.


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